top of page

Onde acaba o asfalto, começa outro século

O asfalto bem tratado da estrada municipal acaba na aldeia de Vale de
Papas. Até lá, serpenteia pelo terreno montanhoso da Serra de
Montemuro.
onde o verde irrompe timidamente pelas colinas, nos espaços onde a opressão

granítica afrouxa. Florescem também entre as rochas inúmeras eólicas,
como moinhos alvos e gigantes, que parecem retirar imponência aos
maciços de pedra rugosa. A mais de mil metros de altitude, 
um sol intenso de fim de Maio torna
o ar, habitualmente seco e rarefeito,
mais pesado. 


O acesso a Vale de Papas pode passar despercebido ao condutor menos

atento. A povoação está blindada pelo granito, escondida por pequenos
montes. 300 metros e um cruzeiro depois da intersecção, ao fundo do largo
que introduz a aldeia, o asfalto é substituído pela calçada. A partir daqui

os carros começam a ser demasiado largos para as ruelas. O desenho da
aldeia
é simples. Um amplo terreno circundado por casas dos mais diversos
tipos:
grandes e pequenas, toscas ou polidas, com colmo ou telha. 


São quatro e meia da tarde e o único indício de presença humana é um
“papa-reformas” mal tratado, estacionado solitariamente no largo.

Os sinais de presença animal, por sua vez, estão espalhados um pouco por
toda
a estrada e invadem com intensidade as narinas mais sensíveis.
O cenário
mantém-se, à medida que se penetra na povoação, até que o
ruído de sinetas
quebra graciosamente o silêncio chilreado. Ouve-se a voz
de um homem.
Apenas um.
“Vamos lá Cabana”. “Hoje estás preguiçosa”.  

O homem da voz é Manuel Fernandes, rosto sulcado pelos 72 anos de idade, olhos de um azul eléctrico. Encontra-se à porta do estábulo e tenta convencer uma vaca a deixar o repouso. Perante a relutância do animal, usa o cabo da sachola como argumento indefensável. “Ainda vou buscar gado a mais dois sítios”, adianta. Tal como Manuel Fernandes, a maior parte dos 21 habitantes de Vale de Papas dedica-se a pastorícia. Os que não o fazem, exceptuando dois casais da aldeia que trabalham fora, “é porque estão velhos e já não podem. Vivem só da reforma”, afirma Florinda da Liberação, outra das residentes. 

A rotina da maior parte dos habitantes sobreviveu à passagem do tempo. Pastam o gado, trabalham a terra. Os canastros e as eiras ainda utilizados são prova disso mesmo. A reforma, afirma a maioria, “vai quase toda pra medicamentos”. O trabalho é diário, sem folgas, e “é uma rotina, todos os dias igual”, considera Manuel Fernandes. Trabalhar, comer e dormir. Na sala de sua casa, uma televisão repousa num canto. “Nem sei se funciona, passam-se meses sem que a ligue”. É também o caso da sua esposa Maria Dias: “normalmente chego a casa cansada, de andar atrás das vacas, se a sopa estiver morna nem a aqueço”. 

A sala de estar do casal é acolhedora, dourada pelos raios de sol de fim tarde. A cozinha é negra. De uma escuridão que engole a luz pálida e amarelada vinda de uma lâmpada de 6 Volts. Na penumbra, Manuel Fernandes lava um copo com o auxílio de um regador. Não há água canalizada em Vale de Papas. Pelo menos não para todos. Os que a têm, cerca de metade, puxam a água de furos particulares.

Até há cerca de três anos, altura em que a Junta de Freguesia de Ramires construiu quatro fontanários espalhados pela aldeia, o acesso à água era ainda mais complicado. A solução era o abastecimento esporádico dos tanques pelos bombeiros. “Por vezes, nem água havia para beber, lavávamos a roupa numa água verde que parecia de lavar as couves”, revela Florinda da Liberação. Agora tudo mudou para melhor. Lava-se a roupa num tanque comum, situado no largo. Maria Dias relembra que “antigamente nem um tanque havia, as velhas iam lavar-se nas poças do chão”. 

A falta de água canalizada agrava outras das insuficiências da aldeia – o sanemento. Em concreto, a falta dele. Florinda da Liberação construiu uma casa de banho há cerca de quatro anos mas não a usa enquanto não tiver água. Contudo, há na aldeia quem não veja nessa falta um inconveniente. Algumas casas de banho sem água transformam parte dos caminhos da aldeia numa ETAR improvisada. Outros, como Manuel Fernandes não têm sequer essa divisão: “a nossa casa de banho é por aí onde calha”, revela Maria Dias. Manuel Fernandes é peremptório: “Não deviam deitar o esgoto para os caminhos. Que os levem para longe, para o monte, que no verão é uma fedesma insuportável”.

 

Para a maior parte dos habitantes, mesmo tendo em conta esta falta de condições básicas, vive-se hoje melhor do que nunca em Vale de Papas.  “Para o que fomos criados, isto é um mimo”, considera Maria Dias. Exemplifica, recorrendo a uma imagem pisciana: “Agora como as sardinhas que quiser. Antigamente era uma sardinha para três – quem ficasse com a puta da cabeça estava desgraçado”. Outra das habitantes, Maria da Luz, concorda que se mudou para melhor, já que “antigamente, toda a gente era mais pobre, não se comprava nada”. Depois de duas ou três interjeições para orientar o gado ressalva, “mas nunca se passou mesmo fome, havia sempre pão e batatas”.  
 

Do alto dos seus 86 anos, Maria da Liberação é a mais velha da aldeia. Os olhos são pequenos, enrugados e dilatam-se, de forma quase imperceptível, quando fala do passado. Nunca viveu noutro lugar, apenas saiu para a vindima em terras do Douro Vinhateiro. Para a anciã, Vale de Papas “está quase igual ao antigamente, o trabalho é o mesmo, mas antes custava mais a vida”. Manuel Fernandes vai mais longe e fala a nível nacional: “Diz-se que o país está arruinado mas o tempo nunca foi tão bom como agora. Os mais novos não sabem nada. Oxalá nunca venham a saber”.

A opinião generalizada de que hoje se vive melhor baseia-se, em grande parte, no atenuamento de duas situações que deflagravam, num passado não muito distante. Por um lado, a pobreza referida, por outro, um fenómeno que nascia da inexistência de uma estrada até ao ano de 1985 – o isolamento.
 
  Mais do que uma estrada
O carro solitário continua estacionado no largo. Um Microcar Lyra cinzento sujo, de 1998. No mesmo sítio. De resto, um primeiro olhar levanta dúvidas sobre a capacidade de locomoção da viatura. Pára-brisas rachado e jantes que ameaçam desintegrar-se a qualquer momento. O carro pertence ao “tio Cardoso” que esporadicamente oferece uma boleia. Não são muitos os carros que pisam os 300 metros que separam Vale de Papas da Estrada Municipal. “Ocasionalmente surge um condutor perdido, que trata logo de voltar para trás”, revela Elias Martins. 

Presença habitual é a dos vendedores ambulantes. Peixe, fruta, pão e até mercearias. Vêm semanalmente à aldeia e representam, na opinião dos moradores, uma das grandes melhoras na qualidade de vida. Principalmente Judite Coelho, a vendedora que traz mercearias todas as quartas-feitas e que permite que a população, na sua grande maioria sem carta nem carro, faça as compras essenciais. Judite faz negócio em Vale de Papas há cerca de 15 anos. “Uma senhora séria que nunca se engana nos trocos”, garante Manuel Fernandes.

Embora o valor da estrada seja reconhecido por todos, ela é ainda vista com alguma desconfiança por alguns dos moradores. “A estrada traz de tudo - gente boa e gente má. Os ladrões, sem estrada, não vinham aqui acartar as coisas às costas”, afirma Manuel Fernandes. A estrada traz ainda visitas menos usuais. “Por vezes vêm aqui rebanhadas de Jeovás. Juntam-se aí mas, como nos não lhes damos paleio, deixam os livros debaixo da porta e vão-se embora”, conta Florinda da Liberação. A residente faz questão de salientar que “ninguém os trata mal porque eles também não nos tratam mal a nós”.

Mas tudo era diferente antes da estrada. A recordação desse tempo traz uma sombra ao olhar dos habitantes. Magnífica de Jesus, de 82 anos, pousa a roca e deixa de fiar por um momento, para relembrar as caminhadas que fazia até Caldas de Aregos. Três horas de caminho, descalça. Levava leite, natas, pão e batatas aos avós que lá faziam tratamento nas águas termais. “Ficava espantada a olhar para os comboios que passavam”, conta. Também ali se ia buscar sal. “Três horas com dois sacos a cabeça, chegava cá em cima cheia de sal até aos olhos”, relembra Maria Dias. 
 

Outro dos trajectos habituais tinha como destino Cinfães. Quando alguém adoecia, era lá que se ia chamar o médico. A pé. O “doutor” seguia depois a cavalo até Vale de Papas. António de Almeida, de 79 anos, não se esquece de uma madrugada de caminhadas, que teve lugar há mais de 60 anos, quando Magnífica “apanhou duas pneumonias”. Depois de chamar o médico e voltar a aldeia, António regressou a Cinfães para comprar os medicamentos. Assim ditava a urgência do tratamento. Encontrou a porta fechada e nela bateu até que o atendessem. Chegou a Vale de Papas quase ao raiar do dia.
 

Viagens mais curtas também eram necessárias. A substituição do colmo pela telha, esse indicador cromático do progresso, não foi feita sem sacrifício. O material provinha da freguesia vizinha. Para a ocasião, juntavam-se os carros de bois da população para ajudar no transporte. Uma hora de viagem, numa comitiva que “chegou a ser composta por oito carros”, garante António de Almeida.

Tudo era diferente antes da estrada. Contudo, a sua falta sentia-se como nunca até à criação do cemitério da aldeia. 

  
   Uma procissão “medonha”
Afastado da população, o cemitério de Vale de Papas dificilmente é encontrado por quem não o procure. A localização, aliada à pequena dimensão e aos muros baixos, faz com que se dilua na paisagem. Quem entra, vislumbra as colinas rochosas do Montemuro, horizonte a fazer lembrar um miradouro. Contam-se poucas lápides, já que apenas foi construído em 1975. A iniciativa partiu dos habitantes, como conta David Almeida, de 68 anos. “A junta e a câmara limitaram-se a autorizar”, garante. 

A necessidade da construção do cemitério está também ligada ao isolamento. Até 1975, era necessário transportar os defuntos até Ramires. Uma viagem de uma hora, a pé, pelos trilhos acidentados que cruzam o monte. Formava-se então uma procissão: padre na frente a ditar as orações, vociferando um terço; caixão e respectivos carregadores atrás, acompanhados por crianças vestindo opas. Chegados ao destino, os homens tinham direito a broa e vinho, pagos pelos familiares do defunto. As crianças a um tostão. A necessidade construía a tradição.

Ao recordar estas procissões, Alfredo Ferreira solta um “era medonho” sussurrado. Os olhos desfocam e faz um leve esgar de esforço. “Uns dias antes iam-se limpar os caminhos com pás e sacholas, principalmente se estivesse neve”. Não estavam livres de acidentes. Relembra a situação em que um dos carregadores tropeçou. A gravidade tratou do resto e um dos portadores sentiu, com mais intensidade do que desejava, o peso do defunto. “Na altura pensámos: queres ver que o morto vai matar o vivo?”. 

O cemitério trouxe descanso a mortos e vivos. Os habitantes de Vale de Papas de bom grado deixaram esta tradição. Dez anos depois, a estrada resolvia alguns dos problemas de isolamento da aldeia. Outras marcas, contudo, sobrevivem até aos dias de hoje.
 
  O que a estrada não resolve
A capela de Vale de Papas não é maior do que a sala de estar da maior parte dos portugueses. No interior, uma janela minúscula permite que a luz natural escorra sobre as figuras do altar. O tecto é forrado a madeira azul-celeste, empaledecida pelo tempo. Contam-se dez bancos corridos, simetricamente alinhados. No meio, repousa uma passadeira digna de pertencer ao mais banal dos corredores.

A modesta capela não tem o uso regular que os habitantes desejam. O padre da freguesia desloca-se esporadicamente à aldeia e desmarca com frequência as missas sem justificação. Maria Dias revela que o confronto não resolveu o impasse: “já lhe chamámos nomes, já lhe chamámos aldrabão mas ele não liga, ele bem sabe...”. Também Maria da Liberação pensa que o pároco devia deslocar-se mais vezes a Vale de Papas. “Na Páscoa, para tirar o folar, ele não falha”, ironiza.

O isolamento não é assunto do passado. É, de resto, a principal preocupação no presente. Durante o ano lectivo, os habitantes têm de apanhar o autocarro escolar das aldeias vizinhas. Contudo, em tempo de férias, esse serviço cessa e apenas passa um transporte público, para a feira municipal, de 15 em 15 dias. Por vezes ao sábado quando os serviços estão fechados. A solução possível é o táxi. Florinda da Liberação faz as contas: “para ir a Cinfães de táxi são 20 oiros, se quiser ir à estação de Mosteiro, apanhar o comboio para o Porto, são 35. Há alturas em que temos mesmo de ir e sai-nos muito caro”. Tudo isto leva a habitante a concluir que “não estamos só esquecidos, estamos enjaulados”. 

Mais do que exterior, o isolamento existe também dentro da aldeia. Cada habitante orienta a sua vida para o trabalho, ritma o seu dia pelas tarefas a desempenhar. Fora o trabalho, pouco mais há. Um cumprimento aqui, dois dedos de conversa acolá. No verão, a lavoura prolonga-se até às nove, dez da noite e deixa apenas tempo para o descanso. “As pessoas não se juntam, cada um trabalha para si”, afirma Manuel Fernandes. 

 

Por um isolamento diferente passa Fernando de Almeida, de 17 anos. Companhia da sua idade só a do irmão Bruno, de 14. Passaram a infância na aldeia. Jogavam à bola nas eiras e cruzavam os caminhos de bicicleta. Fernando revela que prefere “viver em Vale de Papas do que em Cinfães, por exemplo”. É mais sossegado. “Quando ia a Lisboa de fim-de-semana até tinha dificuldade em dormir com tanto carro a passar, a noite toda”. Gosta do trabalho que faz no campo. Gosta também de andar a cavalo, algo que faz quase todos os dias. “Numa cidade não podia ter um cavalo”, relembra.

Em Vale de Papas nunca houve cafés nem qualquer tipo de comércio. Apenas uma venda de vinho tinto e aguardente “do Zé do Constantino”, já há mais de 50 anos. Alfredo Ferreira confessa que “se houvesse um café a gente ainda se distraia. Assim, cada um anda na sua vida, ficamos a viver isolados”. A última festa na aldeia data de há mais de 30 anos. Há cerca de 40, a cozedura do pão ainda legitimava um convívio: jogava-se às cartas, trazia-se um bolo e fazia-se serão. A tradição morreu precocemente e, actualmente, o povo não tem por hábito juntar-se.

Um domingo de eleições constitui uma excepção. A tarde está solarenga, a roupa de domingo saiu do armário. Juntam-se alguns habitantes que esperam pela carrinha da junta para ir às urnas. Nos vinte minutos de espera, formam um debate político. Passos Coelho é comunista, Portas planeia alianças com o Bloco de Esquerda. Frases cruzam o círculo que entretanto se formou:
“se ao menos soubessemos o que é melhor”;
“o que é certo é que isto hoje em dia não há pobres, até esses têm as mãos cheias”;
“dizem que tiraram Vale de Papas do mapa, não sabem que existimos”;
“se calhar querem dinheiro para nos lá pôr outra vez”.

Uma carrinha Mercedes de nove lugares é suficiente para os levar. Aconchegam-se, entusiasmados. Uma hora depois estão de volta. Saiem ainda no largo, despedem-se e seguem para o seu trabalho ou para as suas casas. Maria da Luz já persegue as vacas que teimam em fugir da formação. Manuel Fernandes marca com o condutor uma viagem a Cinfães. Em segundos, desaparecem. A carrinha faz inversão de marcha e dirige-se para a Estrada Municipal. O único caminho possível. O sol continua intenso e o silêncio voltou ao local onde acaba o asfalto. Onde acaba o asfalto e começa outro século.

bottom of page